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Dissabor cotidiano

  “ Exige muito de ti e espera pouco dos outros. Assim, evitarás muitos aborrecimentos.” —  Confúcio Aconteceu, embora muitos se recusem a acreditar, numa das esquinas mais movimentadas da principal avenida da cidade. O tráfego de pessoas era intenso naquela manhã; se eventualmente ocorria um congestionamento, alguns, mais jovens e rápidos, rompiam céleres e impacientes entre os corredores de gente. Aconteceu, meu senhor, e bobo é quem duvida. Eis que um sujeito parou à beira da calçada, esperando a oportunidade para atravessar a rua. Simples, não é? Fato corriqueiro, banal e até vulgar. Acontece que aquele sinal é demorado a beça, todo mundo sabe disso. E quando fecha, o outro abre; daí vem carro da outra via também. Para chegar ao outro lado, quase é necessário pular na pista num raro intervalo do trânsito dos carros. Dá para entender um negócio desses? “É agora ou nunca”, pensou o jovem desconhecido, observando os veículos atenciosamente. Ia ou não ia? Não tinha cer...
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Ah, eu devia ter desconfiado!

    “ Vi de longe o meu amigo Ele me reconheceu Nos aproximamos alegremente E cada um arrefeceu Eu vi que não era ele Ele viu que não era eu.”  Millôr Fernandes Esses dias, precisei ir (contrariado) ao Rio de Janeiro. Uma palestra sobre um novo sistema que seria implantado na repartição. “Você vai num pé e volta no outro, Pachecão, coisa rápida”, disseram. E o pior é que eu acreditei. Ir ao Rio nunca é rápido, crédulo terráqueo, nunca foi. Entretanto, minha vontade de chegar em casa era tão grande, tão grande, que foi motor da exagerada idealização de um cenário ideal e quase utópico. É assim que nós somos, meu senhor: especialistas em criar expectativas, em imaginar panoramas perfeitos, fantasiar finais felizes. Ah, eu devia ter desconfiado… Quando desembarquei de volta à Gotham City, já era demasiado tarde e não havia tempo suficiente para chegar em casa e preparar o almoço. Suspirei, frustrado. O melhor era pegar o picado ali pelo centro mesmo. Pedi um prato ex...

Crônica

  “ Tudo isso já faz parte da rotina. E a rotina já faz parte de você” — Humberto Gessinger Algumas crônicas atrás mencionamos certo esquecimento que nos atinge vez ou outra. Lembra disso? Curioso que ele ataca justamente quando mais precisamos da memória. Por isso é que aqueles que vieram antes de nós registravam as cousas em seus diários, hábito mui saudável a meu ver, que além do benefício de puxar a orelha da mente, funciona muitíssimo bem como catarse. Alguns leitores hão de considerar quase supérfluo acentuar o fato de que nossa memória não é mais como antes, ora, isso é óbvio e quase ululante, diria Rodrigues. Mas o cronista que se preza carrega consigo ao menos um bloquinho onde possa anotar as ideias que se pode desenvolver bem num desses palavrórios, a fim de não deixá-las escapar numa esquina vulgar da cidade. Pois esta crônica é isso: um apanhado de pensamentos que não foram dignos de protagonismo em seu momento e que agora dão as mãos compondo uma insólita ciranda do c...

O valor das coisas

  “ O valor fundamental da vida depende da percepção e do poder de contemplação ao invés da mera sobrevivência ” Aristóteles Arroz, feijão, cenoura, batata, cebola, carne, cerveja e até ovos de chocolate. Não, não se trata de uma lista de itens para o almoço de Páscoa, domingo que vem, mas uma famigerada relação de produtos que estão custando os olhos da cara, um rim, ou alguma parte do corpo humano, única, pessoal e intransferível. Os preços estão, sim, pela hora da morte, mudando hábitos ou as cifras do cartão de crédito. E não sou eu quem está falando, não. Comenta-se em todo lugar: nos noticiários, salões de manicure e inclusive na porta do bar. Apesar disso, as calçadas estavam, incrivelmente, apinhadas de gente carregando sacolas com sarapintados ovos pascais, a fim de presentear esposas, filhos, sobrinhos, afilhados e crushes. Segundo estatísticas, a data só não é melhor para o comércio do que o Dia dos Namorados, Dia das Mães e o Natal. Durma-se com um barulho dess...

A máquina do tempo

  “ O passado é uma roupa que não nos serve mais.” — Belchior De quando em vez a humanidade é contemplada com uma alma elevada, diferente, como se de outra era fosse, talvez um viajante do tempo — se a viagem física para outras épocas fosse possível. E, ainda mais ocasionalmente, percebemos essas notas, estupefatos diante de uma situação, uma frase solta no ar em meio a uma conversa informal, um comentário de uma criança ou um texto escrito há sei lá quanto tempo atrás. Pois foi exatamente isso que senti (e não apenas uma vez), sentado nos degraus da escada, com o livro do Eric nas mãos. A obra, (atenção para spoiler) mote de reprimenda da funcionária da biblioteca pública, fora publicada em 1949 e seu enredo trata tão somente de um futuro distópico que se passa trinta e cinco anos depois. Fez as contas, terráqueo? Sim, Eric (Arthur Blair) é ninguém menos que o xará George Orwell, e o livro, 1984 — o mesmo que serviu de inspiração para um tal reality show. Não sabia dessa? Deixemos...

O cara de pau

  “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.” Oscar Wilde  A ambulância avançava com grande dificuldade pelo viaduto, berrando a sirene a plenos pulmões. Encontrava espaço entre os carros que franqueavam a passagem, desviando para as guias laterais, acionando os pisca-alertas e, ocasionalmente, buzinando para alertar os motoristas mais desatentos no trânsito congestionado. Alguns motociclistas aproveitavam o vácuo formado entre os veículos e desapareciam apressados à frente. Assim como as ambulâncias, motociclistas sempre estão com pressa. A luz vermelha do giroscópio iluminava os muros e fachadas das casas, além das pessoas que caminhavam pela calçada e que, curiosas, dirigiam seus olhares para a pista. Já estavam quase na rotatória da Praça Marcílio Dias, ponto emblemático do trânsito friburguense desde tempos imemoriais. A senhora, na parte traseira da ambulância, era pura aflição e medo, sacolejando num banco desconfortável entre aparelhos, e...

Considerações importantes

“No puedes hablar de eso, no, mi cariño” Dona Maria  Confesso sem embargo que não escrevo tudo quanto gostaria de dizer. Aliás, sem embargo, não. Vamos assumir que tal condição me cause um leve pesar. Vê bem. Se o sabonete está no final, se porventura a toalha de banho foi deixada nalgum canto remoto e desconhecido, pá: crônica. Se fico preso num congestionamento no viaduto, se passo com a roda do carro num buraco, se algo incrível e extraordinário (ou não) acontece no diário do burgo friburguense, pá: crônica. Se o computador desliga em meio a uma tarefa importante, se algum motociclista deixa a moto na vaga para veículos, se o cafezinho oferecido como cortesia no mercado me causa azia, pá: crônica. Tudo vira crônica. Acontece, compreensivo leitor, que “o homem é dono do que cala e escravo do que fala”, disse Freud (parece original, mas nada mais é que uma releitura de “no muito falar não falta transgressão, mas o que modera os lábios é prudente”, versículo de Provérbios). Por iss...