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O cara de pau

 



“Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.”

Oscar Wilde 

A ambulância avançava com grande dificuldade pelo viaduto, berrando a sirene a plenos pulmões. Encontrava espaço entre os carros que franqueavam a passagem, desviando para as guias laterais, acionando os pisca-alertas e, ocasionalmente, buzinando para alertar os motoristas mais desatentos no trânsito congestionado. Alguns motociclistas aproveitavam o vácuo formado entre os veículos e desapareciam apressados à frente. Assim como as ambulâncias, motociclistas sempre estão com pressa.

A luz vermelha do giroscópio iluminava os muros e fachadas das casas, além das pessoas que caminhavam pela calçada e que, curiosas, dirigiam seus olhares para a pista. Já estavam quase na rotatória da Praça Marcílio Dias, ponto emblemático do trânsito friburguense desde tempos imemoriais. A senhora, na parte traseira da ambulância, era pura aflição e medo, sacolejando num banco desconfortável entre aparelhos, equipamentos e a equipe médica.

— Podem pedir para desligar isso? – disse num fastio, referindo-se à sirene. – Detesto esse barulho… – completou, com expressão de sofrimento. Vestia apenas um roupão felpudo e sandálias de dedo, entrelaçando as mãos sobre o colo, envergonhada.

— Sinto muito, senhora… é necessário para alertar os motoristas. Assim, chegamos mais rápido. – respondeu o enfermeiro, aferindo a pressão do homem. Enquanto isso, o médico realizava um exame clínico rápido no paciente deitado na maca, completamente nu, coberto apenas por um fino lençol.

— Querida, não se preocupe. Eu estou bem! – afirmou o senhor, virando a cabeça para o lado, esboçando um sorriso ingênuo. “Sai da frente, cacete!”, gritava o motorista na cabine.

— 15 por 8. – disse o enfermeiro, após liberar o ar do aparelho de pressão.

— Como não vou me preocupar? Você está aí, desse jeito, imóvel… – comentou a senhora, num tom angustiado. A ambulância dava solavancos e, às vezes, avançava com maior velocidade. Naquele compartimento, era impossível saber em que ponto da cidade se encontravam.

— Como foi que aconteceu mesmo? – perguntou o enfermeiro, com ar interessado, enquanto bombeava a pera do aparelho.

— Eu estou bem. Sério, meu bem. Não precisa se preocupar… – afirmou novamente, com um tom evasivo e um sorriso forçado. Era evidente que sentia dor em algum lugar, uma dor suportável, mas, ainda assim, uma dor.

— 14 por 8… – disse o enfermeiro, com leve frieza.

— Ai, eu me sinto tão culpada! – disse com a voz embargada, quase chorando.

— Provavelmente, é apenas um mau jeito na coluna. Mas precisamos fazer alguns exames para descartar outras complicações. – explicou o médico, com um tom gentil e carinhoso. A ambulância parou novamente.

— Viu? Não é porra nenhuma. Ora, é preciso muito mais para me derrubar, meu bem! – exclamou o senhor, cheio de orgulho. O veículo arrancou bruscamente e avançou outra vez pela pista, desviando para um lado e para o outro, talvez para escapar de algum obstáculo.

— Mantém! – afirmou o enfermeiro, soltando o ar do aparelho de pressão.

— Por favor, conte-me de novo… O senhor tinha ido dormir? – perguntou o médico, depois de colocar o estetoscópio sobre o pescoço e encostar-se na parede da ambulância.

— Tinha, mas não estava dormindo… – respondeu com naturalidade.

— Então, estava acordado? – continuou o doutor, demonstrando falsa surpresa. É claro que o senhor estava de saliência com sua esposa, não restava dúvida. Como ele conseguiu ficar paralisado da cintura para baixo era o mistério.

— Mais do que nunca! – respondeu, novamente orgulhoso. “Jesus, Maria e José!”, gritou o motorista e a ambulância deu mais um solavanco.

— O senhor quer dizer que… – começou o enfermeiro, movendo o olhar entre ambos e depois para o médico.

— Amor não fala, que eu tenho vergonha! – pediu a senhora, cobrindo o rosto com as mãos. “Bora, porra!”, ouviu-se o motorista esbravejar na cabine, buzinando impacientemente.

— Vergonha de quê, meu bem? – questionou o homem, virando-se novamente para a mulher, disfarçando uma expressão de dor.

— Os senhores estavam… – considerou o médico, apontando o dedo para ambos.

— Qual a surpresa, meu jovem? Não preciso explicar como as crianças vêm ao mundo, não é? – respondeu o velho, com indignação, ruborizando.

— Mas nessa idade! – comentou o enfermeiro, distraidamente, bombeando novamente o aparelho para medir a pressão. Do alto de seus oitenta e poucos anos, o senhor fechou a cara.

— E o que tem de mais? Acha que um dia vou marcar uma partida de despedida e pendurar as chuteiras? Nem a pau, Juvenal! Eu vou morrer em campo, ouviu bem? Em campo! – disse com entusiasmo, tremendo os lábios e as bochechas, ligeiramente flácidas. A ambulância acelerou ainda mais e os corpos inclinaram-se para trás pelo efeito da inércia. “Ê, potência!”, exclamou o motorista.

— Ai, amor, não fala assim, que eu morro de medo! – disse a senhora, limpando uma lágrima recente e fungando o nariz.

— Mas o senhor precisa ter mais cuidado… – argumentou o enfermeiro, num tom afetado, liberando o ar do mecanismo pouco a pouco, enquanto observava o manômetro. O médico limitou-se a sorrir.

— Cuidado? Meu filho, a vida é dos que sempre querem mais, daqueles que não se deixam abalar pelos limites impostos pelo tempo, pelo mundo. Se não for assim, você não está vivendo, mas sobrevivendo.

— 13 por 8… – alertou o enfermeiro, um pouco mais comedido no tom. “Anda! Eu acredito em você!”, exclamava o motorista, divertidamente.

— Mas eu não entendo o que o senhor fez para ficar paralisado da cintura para baixo… – comentou o enfermeiro, quase para si mesmo.

— Não acha que está sendo muito indiscreto? Que está constrangendo minha senhora? – retrucou o velho, franzindo o sobrolho.

— P-perdão, senhor, não… não era minha intenção… – desculpou-se o enfermeiro, gaguejando. O senhor não se deu por satisfeito.

— Use sua imaginação. Não vou te dar uma aula de como fazer uma mulher feliz.

— Senhores, desculpem, mas é apenas uma anamnese simples para orientar o tratamento… – interveio o médico em resgate do colega.

— Foi só um jeito na coluna. Quer fazer uma radiografia, uma tomografia? Eu pago o plano para isso! Me dá umas injeções e amanhã eu tô novinho em folha, pronto para outra! A ambulância balançou para um lado, para o outro, deu três pequenas freadas e parou de vez. “Chê-ga-mos!”, gritou o motorista, num tom alegre e jovial.

A porta traseira abriu-se e o enfermeiro desembarcou com o médico e a senhora, puxando cuidadosamente a maca para fora. Em seguida, dirigiram-se, tão apressados quanto motociclistas e ambulâncias, para a entrada de emergência do hospital, o enfermeiro guiando a maca e a esposa do paciente acompanhando ao lado. O médico ficou para trás, paralisado a meio caminho, observando os três atravessarem a porta do hospital. Rompeu marcha, mas foi interrompido quando o motorista se aproximou.

— Aê, doutor. Esse é o tipo de coisa que nunca vai acontecer com o senhor. – comentou ele, seriamente.

— Ora, e por quê? – perguntou o médico, virando-se na direção dele.

— Porque o senhor está apenas sobrevivendo! – respondeu o outro, num sorriso malicioso.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Publicado originalmente no Portal Multiplix em 10 de agosto de 2025.

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