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A máquina do tempo

 

O passado é uma roupa que não nos serve mais.” — Belchior

De quando em vez a humanidade é contemplada com uma alma elevada, diferente, como se de outra era fosse, talvez um viajante do tempo — se a viagem física para outras épocas fosse possível. E, ainda mais ocasionalmente, percebemos essas notas, estupefatos diante de uma situação, uma frase solta no ar em meio a uma conversa informal, um comentário de uma criança ou um texto escrito há sei lá quanto tempo atrás.

Pois foi exatamente isso que senti (e não apenas uma vez), sentado nos degraus da escada, com o livro do Eric nas mãos. A obra, (atenção para spoiler) mote de reprimenda da funcionária da biblioteca pública, fora publicada em 1949 e seu enredo trata tão somente de um futuro distópico que se passa trinta e cinco anos depois. Fez as contas, terráqueo? Sim, Eric (Arthur Blair) é ninguém menos que o xará George Orwell, e o livro, 1984 — o mesmo que serviu de inspiração para um tal reality show. Não sabia dessa?

Deixemos de prologar e sigamos, de fato. “O passado tem existência real?”, perguntou determinado personagem, para depois complementar: “O passado existe concretamente, no espaço? Existe algum lugar ou um outro lugar, um mundo sólido, onde o passado está acontecendo?”. Putzgrila, cara pálida. Eu jamais havia pensado, em meus quarenta e dois juveníssimos anos, numa coisa dessas. Quem pensaria? A resposta é não, evidentemente. “Então onde existe o passado, se é que existe?”, continua o interrogador. “Em registros e nas memórias humanas”, responde-se. E aqui vai um censurado “puta que pariu”.

O grande questão da assertiva é que o passado não existe, posto que os registros podem ser controlados e a memória humana é moldável. Não existe, é abstrato, impalpável. Ria, caso queira, meu senhor. Mas essa é a verdade, certo como dois e dois são cinco, e inúmeros exemplos disso, podem ser depositados à mesa para corroborar, na história mundial e inclusive, a tupiniquim.

Joaquim José da Silva Xavier, o inconfidente. Outrora subversivo e conspirador, foi o único dos envolvidos no movimento condenado à morte — e curiosamente, também o único transformado em herói pela Proclamação da República. E “pá!”, o passado foi reescrito e a memória coletiva moldada. Quem não se recorda da obra Pedro Américo, estampado nas cartilhas de história, Tiradentes quase uma personificação de Cristo, a fim de exaltar as figuras de republicanos em oposição aos tempos de monarquia?

Tal coisa ocorre a pampas em nosso corriqueiro dia a dia, tão sutil e deliberadamente, que mal percebemos. Está na recriação de fatos banais, para enaltecer uma atitude banal ou eufemizar um comportamento reprovável (como permanecer com um livro desde setembro sem renovar o empréstimo, ou uma batida no trânsito, mais um copinho de cerveja no bar com os amigos, o atraso no horário do trabalho, a demasiada simpatia de um desconhecido na rua). Não adianta desviar o olhar, enrubescido leitor, isso acontece todos os dias, todos sabemos disso.

O passado não existe, isso é fato. Ou sim? Talvez (puta que pariu, eu jamais havia pensado na possibilidade). Apesar disso, sentado nos degraus da escada, correndo os olhos pela página 222 (sempre me incomoda grafar os números em algarismos), dialogando com personagens de um futuro (nem tão) distópico de quarenta anos atrás, percebo, uma vez mais, que a viagem temporal, é sim, possível. Veja-me, aqui, em 1984. Lembro-me, então, num suspiro desconcertado e pesaroso, que preciso devolver a prodigiosa máquina do tempo.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Publicado originalmente no Portal Multiplix em 20 de março de 2024.

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