Pular para o conteúdo principal

Meia-noite e meia

  


“O sono é como uma outra casa que poderíamos ter, e onde, deixando a nossa, iríamos dormir. ”

Marcel Proust

Coloquei as sacolas do mercado sobre a mesa e me dirigi ao banheiro. O dia no trabalho fora agitado e produtivo; os números das planilhas contábeis ainda marcavam minha mente como se tivessem sido datilografados com fita nova. Lavei o rosto, urinei e acionei a descarga. Lavei novamente as mãos e as sequei, retornando à cozinha para preparar o jantar. Faltavam quinze minutos para as dezenove horas.

O macarrão era feito com massa de arroz, sem glúten, e foi servido com molho à bolonhesa, acompanhado de queijo fresco ralado, ovos mexidos, passas e azeitonas pretas. Viver sozinho levava a refeições rápidas e simples, quase frugais, que não interferiam no tempo que poderia ser dedicado ao descanso. A televisão era a única fonte de luminosidade na sala, emitindo uma luz azul, supostamente relaxante. No entanto, as notícias não compartilhavam da mesma tranquilidade: tratavam de balas perdidas nos centros urbanos, queimadas na Amazônia, a queda na avaliação do Governo Federal e até guerras do outro lado do mundo.

Concluí a refeição e congelei o restante, pois não tinha estômago para aquela quantidade de comida; exagero meu preparar tamanha porção apenas para mim. Fumei um cigarro, debruçado na janela, observando a noite que avançava lenta e silenciosamente, antes de lavar a louça; a atividade era uma oportunidade de relaxamento e permitia-me um tempo para uma breve digestão antes de me deitar.

“O chefe pediu os relatórios sobre recolhimento de impostos sobre serviços para amanhã, sem falta...”, eu refletia durante o banho quente, que durou mais de meia hora – pesquisas indicam que a água em temperaturas em torno de 37ºC é uma excelente forma de relaxamento, reduzindo a tensão muscular, o cansaço e o estresse do dia. Tentei silenciar as vozes em minha mente, como indicado pelo médico, mas isso ainda era um completo enigma para mim.

Ativei o despertador no celular e o desliguei imediatamente, para evitar distrações e estímulos para a mente; o que eu necessitava naquele momento era relaxar. Deitei-me e me cobri com um cobertor fino, não estava frio para mais que isso. Virei-me para o lado esquerdo, pois essa posição auxilia na digestão, ainda em movimento no estômago. Inspirei profundamente e controlei a respiração: um, dois, três… e soltei o ar lentamente.

“Pai nosso, que estais nos Céus… puxa vida, esse negócio de reciprocidade com os americanos… deixem eles taxarem, pô. Senhor, receba esta oração pelo juízo dos governantes.” Onde eu estava mesmo? Ah, sim. “Pai nosso, que estais nos Céus. Amém!” abreviei a oração ao sentir os olhos pesarem, mas um espasmo nas pernas me fez saltar do colchão e despertar. Liguei o celular para verificar as horas, estava ofegante e alerta, tomado por um calor repentino que me fez afastar o cobertor com vigor. Puta que pariu! Onze e trinta, nem meia hora havia se passado desde que me deitei. Merda!

“Pai nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome… o chefe pediu os relatórios sobre recolhimento de impostos sobre serviços para amanhã; os números das planilhas ainda estão gravados em minha mente como se tivessem sido digitados em negrito.” “Pai nosso… rapaz, se os americanos tomarem partido dos ucranianos… Amém! O pão nosso de cada dia nos dai hoje… Amém!” Suspirei. Estiquei o braço para pegar o celular na cabeceira: onze e quarenta e cinco. Puta merda!

Senti uma nova onda de calor e me virei para o outro lado. Morfeu, Morfeu... por que me abandonaste? Peraí, que zumbido é esse? Só me faltava essa, uma porra de um mosquito! Levantei-me de um salto e acendi a luz para procurar o puto do inseto. Permaneci parado no meio do quarto, com a sandália de borracha na mão, tentando rastrear o som e acertar o dito cujo. Opa, olha ele aqui: toma, seu vagabundo! Matei o mosquito na parede branca, manchando a superfície de sangue. Depois eu limpo. Aliás, amanhã preciso varrer isso aqui com mais atenção, tem um pouco de poeira no canto. O que é isso? Outro mosquito? Filhos da puta! Parece que está perto do guarda-roupa. Pô, eles são do cacete mesmo… mimetizam-se na cor amadeirada das portas. Olha ele ali… Dei uma porrada no desgraçado, mas nem sinal do corpo. Também não houve mais zunido, então resolvi encerrar minha ofensiva e voltar para a cama. Já era hora.

Meia-noite e meia. Pelo amor, de Deus, eu preciso dormir! Melhor tomar outro banho, fiquei todo suado, a pele grudenta… assim não consigo dormir. Liguei o chuveiro e reduzi a temperatura da água para quase fria, talvez fosse melhor assim. Para mim, esse papo de queimada na Amazônia não tem nada a ver com o aquecimento global, aliás, esse conceito de aquecimento global é o grande argumento dos países desenvolvidos para frear a economia dos países emergentes. Eles apelam até para os peidos das vacas para justificar seu imperialismo.

Acendi outro cigarro, com a janela basculante aberta, talvez uma tragada ajudasse a relaxar. Arrotei e senti o sabor de azeitona; preciso procurar um gastroenterologista, minha digestão não está nada ortodoxa. Comi demais, inclusive. Exagero meu preparar tamanha porção apenas para mim. Apaguei o cigarro no batente e o joguei no quintal, fechando a janela antes que algum mosquito entrasse novamente. Marcava cinco para uma quando me deitei novamente.

“Pai nosso… não nos deixeis cair em tentação…”. Um motoboy não conseguia identificar o endereço e passou buzinando na rua para chamar a atenção do cliente. Senti vontade de levantar, acender a luz e matá-lo com minha sandália de borracha. Uma e vinte e cinco. “Livrai-nos do mal…”. Puxa vida, os americanos querendo uma planilha para amanhã, o chefe querendo taxar todo mundo. “Senhor, receba esta oração pelo juízo do meu patrão…”. Duas e trinta e sete. Os peidos das vacas contribuem para o efeito estufa. As calotas polares estão derretendo e a culpa é das vacas.

Suspirei. A torneira da pia não estava fechando direito, precisei apertá-la bastante para sustar o fluxo de água quando lavei a louça do jantar. A dengue está matando mais que balas perdidas nos grandes centros urbanos. Três e quarenta. Virei de lado e controlei a respiração. Um, dois, três… e soltei o ar lentamente; um, dois, três… e soltei o ar lentamente. Quatro e dez.

Cinco horas: levantei e fui ao banheiro, lavei o rosto, urinei e acionei a descarga. Lavei novamente as mãos e as sequei. Segui para a cozinha e tomei um copo de água. Retornei para a cama arrastando os pés, o corpo completamente dolorido. “Pai nosso, que estais nos Céus… eu estou doido para dormir, mas seja feita a vossa vontade e não a minha…” Os olhos pesaram e, finalmente, perdi a consciência. O alarme clássico do despertador no celular tocou precisamente às cinco e meia, os passarinhos cantavam felizes, saudando o novo dia após uma bela noite de sono. Sorte dos passarinhos.

Esfreguei os olhos, espreguicei-me e afastei o cobertor. Levantei-me e fui ao banheiro, lavei o rosto, urinei e acionei a descarga. Estiquei os braços acima da cabeça, entrelaçando os dedos até que estalassem; encarei-me no reflexo do espelho, a face marcada por vincos e olheiras, o cabelo revirado. Os passarinhos cantavam e cantavam; a torneira da cozinha pingava e pingava; a Amazônia queimava e queimava; o governo desagradava e desagradava. Suspirei. Eu sabia perfeitamente que o dia no trabalho seria intenso e produtivo; a noite, porém, ainda era um completo enigma para mim.

George dos Santos Pacheco

georgespacheco@outlook.com

* Publicado originalmente no Portal Multiplix em 16 de julho de 2025.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Túnel Eduardo Guinle é inaugurado em Nova Friburgo após 7 anos de obras

  Nova infraestrutura é marco na história da cidade e atende a um grande anseio da população por melhorias na mobilidade urbana O túnel rodoviário que liga os bairros de Olaria e Ypu foi oficialmente inaugurado hoje, após sete anos de obras. A cerimônia contou com a presença de diversas autoridades, incluindo o Governador do Estado do Rio de Janeiro. A obra é um marco na história da cidade e responde a um grande anseio da população friburguense por melhorias na mobilidade urbana. A nova infraestrutura promete reduzir o tempo de deslocamento entre os bairros e melhorar a fluidez do tráfego no centro da cidade, sobretudo na Praça Marcílio Dias. Além disso, a obra também vai contribuir para a redução da poluição do ar e do ruído, melhorando a qualidade de vida dos moradores. A inauguração do túnel é um passo importante para o desenvolvimento da cidade e demonstra o compromisso do governo com a melhoria da infraestrutura urbana. A população friburguense recebeu a notícia com entusiasmo...

Estátua de Machado de Assis é reinaugurada em Nova Friburgo após ato de vandalismo

Monumento que foi pichado com a frase 'Capitu inocente' é restaurado e volta a atrair turistas na Praça Getúlio Vargas A estátua de Machado de Assis, localizada na Praça Getúlio Vargas, em Nova Friburgo, foi reinaugurada após sofrer um ato de vandalismo que gerou indignação na comunidade local. A estátua, que é uma doação da Academia Brasileira de Letras ao município, foi pichada com a frase "Capitu inocente" em letras vermelhas, aparentemente em protesto ao enredo do livro "Dom Casmurro", no qual Bentinho, narrador da história,  questiona a fidelidade da esposa, Capitu. A estátua, que havia sido danificada, foi restaurada e agora volta a ser um ponto turístico importante na cidade. A obra de arte havia sido instalada na década de 1970 e era muito visitada por turistas que desejavam registrar o momento com o Bruxo do Cosme Velho. Machado de Assis tem uma ligação especial com Nova Friburgo, onde esteve em duas ocasiões para tratar de sua saúde e da saúde de s...

Galã friburguense estreia em novela da Global

O friburguense Gê vive o personagem principal da próxima novela das 20h, estreando como ator, depois de uma vitoriosa carreira como escritor. A Global está apostando que em breve Gê terá se transformado no mais novo “Namoradinho do Brasil”. Gê faz par romântico com a atriz Débora Cecco e as cenas tórridas vividas pelo casal vêm causando estremecimento entre o novo galã e sua esposa, D. Maria. No entanto, o salário, que se acredita ser superior a R$ 300.000,00, têm acalmado os ânimos de D. Maria, principalmente depois que Gê declarou que vai matricular os filhos em universidades norte-americanas. Além disso, Gê já firmou contrato ─ com cachê milionário ─ para estrelar comercial do papel higiênico BemBom. Mas não é sem motivo que D. Maria não se preocupa com a possibilidade de que o romance da novela vire romance na vida real. **************************************** Esta é uma obra de ficção.  Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coi...

Homem é resgatado após dois dias na Pedra da Catarina

Pedra da Catarina: montanha é conhecida nacionalmente abrigar o letreiro de Nova Friburgo Um montanhista de 25 anos foi resgatado com ferimentos leves após passar 48 horas perdido na trilha que leva ao topo da Pedra da Catarina, uma montanha famosa por abrigar o icônico letreiro de Nova Friburgo. O jovem, que se encontra bem após o resgate, expressou sua gratidão pelo trabalho eficiente dos bombeiros. A Pedra da Catarina, que leva esse nome em homenagem ao Deux Catherine , u m dos navios que trouxeram os primeiros colonos suíços para Nova Friburgo , é um ponto turístico conhecido não apenas pela beleza natural, mas também pelo letreiro gigante que se tornou um símbolo da cidade. Com letras maiúsculas brancas medindo 14 metros de altura e 106 metros de comprimento, o marco foi construído em 1966 e oficialmente inaugurado em 16 de maio de 1968, por ocasião das festividades dos 150 anos de Nova Friburgo. " Eu escalei as montanhas mais altas...", disse  Y ou-too A equipe de res...